Vítor Sandes
O Brasil conta hoje com cerca de 150 milhões de eleitores alistados junto à Justiça Eleitoral. Desses, 147.918.483 estão aptos a votar nas eleições municipais a serem realizadas em novembro. Este pleito acontece em um contexto bastante particular, de pandemia de Covid-19, em que as aglomerações potencializam a difusão de uma doença que não está controlada no país. Esta situação será capaz de aumentar a abstenção eleitoral?
Os jovens com idade entre 16 e 17 anos e pessoas com mais de 70 anos não são obrigados a votar e totalizam quase 10% do eleitorado. Ou seja, 90% de todo o eleitorado alistado, em tese, precisa comparecer às urnas. Mas ainda que a votação seja compulsória para a maior parte do eleitorado brasileiro, existem possibilidades para que o eleitor não compareça e, mesmo assim, não tenha seu título de eleitor cancelado: por meio de justificativa eleitoral, para aqueles que não conseguiram comparecer às urnas no dia do pleito, seja em uma seção eleitoral no dia das eleições ou, posteriormente, em datas estabelecidas pela Justiça Eleitoral, por meio do Sistema Justifica do TSE. Caso não seja feita a justificativa eleitoral, o eleitor corre o risco de ter o título cancelado, o que pode impedi-lo de obter carteira de identidade, passaporte, concorrer e ser empossado em cargos públicos, dentre outros impedimentos.
Mesmo com a possibilidade de justificativa eleitoral, a obrigatoriedade do voto leva a maior parte do eleitorado às urnas. Entre 80% e 85% do eleitorado apto costuma comparecer e votar. Nas eleições municipais de 2016, por exemplo, a abstenção foi de 17,6%. Se considerarmos a proporcionalidade por grupo etário, aqueles que mais se ausentaram em 2016 foram os que possuem mais de 70 anos, mas isso representou apenas 4,55% da abstenção total. Dado que esse grupo já apresenta proporcionalmente as maiores taxas de abstenção, é esperado que, nas eleições deste ano, a abstenção desse segmento aumente, o que pode inflacionar a abstenção total.
Outro grupo que poderá se ausentar mais nestas eleições é aquele que possui de 60 a 69 anos, que também é mais propenso a desenvolver um quadro mais grave da doença e, consequentemente, tem maior probabilidade de vir a óbito. Este grupo é obrigado a votar e representa, hoje, 11,31% do eleitorado apto. É esperado que parte dos eleitores deste grupo também seja mais cauteloso e prefira se abster nas eleições e opte pela justificativa eleitoral. É possível ainda que eleitores com idade inferior a 60 anos, que possuem doenças crônicas e comorbidades (e possuam outros fatores de risco), façam a mesma avaliação. Segundo um estudo recente publicado na Revista de Saúde Pública, entre um terço e metade da população brasileira adulta pode ter pelo menos um fator de risco para desenvolver um tipo mais grave de Covid-19. Além disso, aponta que adultos com menor escolaridade apresentam prevalência de fatores de risco duas vezes maior do que aqueles que possuem curso superior completo.
É por isso que realizar as eleições municipais em um contexto pandêmico, com ações governamentais pouco assertivas no controle da doença no curto e médio prazo, impõe cuidados. Alguns procedimentos estão sendo tomados pela Justiça Eleitoral para tentar minimizar os riscos no dia das eleições: extensão do horário (começará às 7h e não às 8h, mas terminará no mesmo horário, às 17h); o uso obrigatório de máscara; a disponibilização de álcool em gel e álcool líquido com borrifador nas secções eleitorais; recomendação sobre horário específico para que idosos possam votar (de 7h às 10h); dentre outros. O problema é que, dificilmente, será possível fiscalizar o que acontece fora das secções eleitorais, nos corredores, nas entradas e saídas dos locais de votação, mantendo rigorosamente as orientações de distanciamento social nos 5568 municípios brasileiros nos quais ocorrerão eleições.
O estímulo à participação eleitoral em um momento de pandemia de Covid-19 torna-se, portanto, contraditório. Por um lado, as aglomerações ocasionadas no dia do pleito eleitoral podem gerar a elevação do número de casos de Covid-19 e, consequentemente, de óbitos. Assim, é racional que indivíduos pertencentes ao grupo de risco deixem de votar. Por outro lado, as eleições são o principal momento da democracia e os eleitores sabem que esta é uma das poucas oportunidades em que pode expressar claramente sua preferência, premiando ou punindo políticos. Nesse sentido, o indivíduo pode optar ou não por assumir o risco de ser contaminado por querer expressar uma escolha eleitoral que definirá os rumos da política da sua localidade.
As eleições são fundamentais nas democracias e sem a participação efetiva dos eleitores no processo de escolha de candidatos, haverá uma perda na qualidade do processo. No entanto, quando o ato de votar, de exercer um direito político, é concorrente a outro direito, à vida, é possível que estejamos diante de um falso dilema, pois o direito à vida se sobrepõe ao direito ao voto, ainda mais quando não se tem clareza se as condições para o exercício do voto serão, de fato, seguras, sobretudo para quem está no grupo de risco.
Vitor Sandes é Professor Adjunto da Universidade Federal do Piauí (UFPI). Doutor em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
E-mail: vitorsandes@ufpi.edu.br
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