Perder ganhando? O desempenho do Chega nas eleições autárquicas de Portugal em 2025
- NEPOL UFJF

- 27 de out.
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Camila Miranda Evangelista
Gustavo Fernandes Paravizo Mira
As eleições locais de 12 de outubro de 2025 representaram um momento decisivo para a configuração da política portuguesa. O pleito local deste ano foi relevante não apenas por consolidar o domínio do Partido Social Democrata (PSD) e do Partido Socialista (PS) na esfera regional, mas também evidencia algumas características e apresenta os limites do Chega – partido de ultradireita liderado pelo deputado da Assembleia da República, André Ventura – em sua tentativa de transformar protagonismo nacional em presença territorial.
Desde a sua fundação em 2019, o Chega vem crescendo de forma constante e tornou-se a segunda força no Parlamento, com 60 deputados eleitos nas legislativas de maio de 2025. Esse avanço criou um ambiente de expectativa em torno das eleições locais deste ano, vistas pela direção do partido como um teste de maturidade política e de capacidade organizacional.
Para Ventura, que é professor universitário e fez da retórica anti-establishment a base da sua carreira política, vencer nas Câmaras Municipais significava demonstrar sua força política e consolidar uma rede de influência capaz de sustentar suas ambições na política nacional que incluem uma eventual candidatura à Presidência em 2026.
A lógica das eleições autárquicas e o teste do enraizamento
As eleições no nível local em Portugal, entretanto, possuem uma lógica própria. As autarquias locais são os órgãos de governo dos municípios e das freguesias, que são as unidades administrativas do poder local no país. Nas eleições autárquicas são escolhidos a cada quatro anos os representantes das câmaras municipais, assembleias municipais e juntas de freguesia – estruturas que se assemelham, em certa medida, aos municípios e distritos brasileiros, mas com autonomia administrativa mais ampla e forte presença de candidaturas independentes. Nelas, o voto tende a premiar a proximidade com o território, a atenção às suas demandas e a reputação local, o que desafia partidos com estrutura recente e centralizada, como o Chega.
Enquanto o município exerce funções de gestão política e administrativa em maior escala, com competências em planejamento urbano, transporte, educação, cultura e políticas sociais, a freguesia atua em um nível mais próximo da população, concentrando-se em tarefas de manutenção de espaços públicos, apoio social e serviços administrativos de proximidade (como emissão de atestados, pequenas obras e atendimento comunitário). Conforme vemos no Quadro 1, ambos conservam competências no que se refere à execução de políticas, sobretudo no caso das Câmaras Municipais e das Juntas de Freguesia, e do ponto de vista deliberativo, através das assembleias Municipal e de Freguesia.
Quadro 1 - Estrutura dos órgãos municipais e de freguesia de acordo com a forma de eleição e principais funções
NÍVEL | ÓRGÃO (NATUREZA) | COMPOSIÇÃO | FORMA DE ELEIÇÃO | PRINCIPAIS FUNÇÕES |
MUNICÍPIO | Câmara Municipal (Executivo) | Presidente da Câmara e vereadores (um pode ser vice-presidente). | Voto em listas partidárias fechadas. Primeiro da lista mais votada torna-se Presidente da Câmara. Restante dos lugares distribuídos proporcionalmente de acordo com o desempenho do partido. Áreas de administração, conhecidas como pelouros (obras, urbanismo, orçamento etc.), são distribuídas entre os vereadores. | Representar o município; Administrar serviços públicos locais; Executar orçamento; Aplicar decisões da Assembleia Municipal. |
MUNICÍPIO | Assembleia Municipal (Deliberativo) | Presidente e dois secretários (mesa); Deputados Municipais eleitos; Presidentes das Juntas de Freguesia (membros natos). | Deputados municipais eleitos por voto direto nas listas partidárias. Presidentes das Juntas participam automaticamente. Cabeça da lista mais votada preside a assembleia. | Fiscalizar a Câmara Municipal; Aprovar plano e orçamento; Votar relatórios e contas; Aprovar regulamentos e moções; Acompanhar políticas municipais. |
FREGUESIA | Junta de Freguesia (Executivo) | Presidente da Junta; Secretário; Tesoureiro; (outros vogais possíveis) | Primeiro da lista vencedora para Assembleia de Freguesia torna-se Presidente da Junta. Restante dos membros assumem cargos executivos. | Executar decisões da Assembleia de Freguesia; Gerir serviços de proximidade; Representar a comunidade. |
FREGUESIA | Assembleia de Freguesia (Deliberativo) | Presidente e dois secretários (mesa); Demais membros da assembleia. | Eleição por listas partidárias fechadas. O número de membros varia conforme o número de eleitores (de 7 a 19). Cabeça da lista mais votada preside a assembleia. | Fiscalizar a Junta; Aprovar plano e orçamento da freguesia; Votar relatórios e contas; Deliberar sobre assuntos locais. |
Fonte: elaboração própria com dados da LUSA-Autárquicas 2025
Antes das eleições, a estratégia eleitoral do Chega combinava discurso de protesto e ressentimento com promessas de eficiência na gestão local. O partido procurou capitalizar o sentimento de insatisfação com os partidos tradicionais, sobretudo entre os jovens, apostando num discurso centrado em segurança, imigração, corrupção e moralidade pública. A campanha repetiu, em escala municipal, a narrativa de Ventura sobre “limpar” a política portuguesa, de forma a convencer o eleitorado de que o partido já não era apenas uma força de oposição, mas uma alternativa para governar.
Para isso, Ventura espalhou seu rosto em outdoors por todo o país, apostando na popularidade conquistada nas eleições que o consagraram deputado. Esse movimento já havia se repetido nas disputas para a Assembleia da República em 2022, 2024 e 2025, quando foi o principal puxador de votos do partido e contribuiu para ampliar significativamente a sua bancada.
A estratégia de Ventura consistia em converter o capital político acumulado, fruto de sua retórica popular e sua atuação como ex-comentarista de futebol em programas de TV, em resultados eleitorais no plano local. Convém lembrar que, nas eleições proporcionais portuguesas, o voto é dado à lista partidária fechada, e a ordem dos candidatos é definida previamente pelo partido, o que torna o desempenho coletivo da sigla determinante para a eleição individual de deputados. A expectativa era de que a mesma receita funcionasse para o nível local, onde municípios e freguesias escolhem seus representantes também através de lista fechada.
Inclusive, os principais deputados do partido foram escalados para puxar votos para as listas do Chega no país, especialmente em localidades importantes como Sintra, Faro, Loures e Oeiras. Dos 60 legisladores na Assembleia Nacional, 44 foram candidatos a presidências de câmara e 15 concorreram nas assembleias municipais. Nome importante foi o da deputada Rita Matias. Considerada uma das figuras em ascensão no partido, ela é a única mulher a ocupar papel de destaque na bancada parlamentar. Tornou-se um dos rostos centrais da campanha. Jovem, católica e identificada com o eleitorado mais conservador, Matias simbolizou a tentativa de renovar a imagem do Chega, apresentando-o como um movimento com rosto feminino e discurso moralizador. Apesar disso, a condução da estratégia continuou concentrada em André Ventura, cuja presença midiática eclipsa outras lideranças e mantém o partido fortemente dependente do seu carisma pessoal.
Contudo, a dependência do líder, embora eficaz em campanhas nacionais, mostrou-se um obstáculo no terreno local. As eleições autárquicas exigem capilaridade e enraizamento, fatores que favorecem o PSD e o PS, cujas máquinas partidárias contam com décadas de inserção nas comunidades. Sem quadros consolidados e sem alianças sólidas, o Chega teve dificuldade em converter o entusiasmo parlamentar, centrado em Ventura, em vitórias municipais, revelando a distância entre o voto de protesto e a confiança para governar.
Os resultados e o cenário europeu
Os resultados eleitorais confirmaram a tendência de crescimento do Chega em número de representantes locais, mas também exibiram o descompasso entre o avanço eleitoral e a capacidade de garantir o controle das Câmaras Municipais, principal instância administrativa local. Segundo dados oficiais do Tribunal Constitucional, o partido elegeu 137 vereadores e 635 deputados municipais em 2025, contra 19 e 173 em 2021 - um aumento percentual de 635 e 267%, respectivamente. Além disso, conquistou 1.175 assentos em assembleias de freguesia – um salto expressivo que demonstra maior penetração territorial, embora ainda insuficiente para disputar o controle de autarquias de maior dimensão.
Gráfico 1 – Evolução do Chega nas eleições autárquicas (2021–2025)

Apesar da expansão significativa, o desempenho do Chega revela-se mais modesto quando observado em termos proporcionais. O partido conquistou cerca de 6,6% (137 de 2.058) das cadeiras nas Câmaras Municipais - venceu em apenas três Câmaras Municipais em todo o território -, 9,8% (635 de 6.463) dos assentos nas Assembleias Municipais e outros 4,2% (1.175 de 27.973) nas Assembleias de Freguesia. Esses resultados confirmam o crescimento de sua estrutura, mas também evidenciam os seus limites. Mesmo como segunda força no Parlamento, o Chega ainda está longe de alcançar a capilaridade esperada de um partido de grande porte. Em outras palavras, o avanço foi quantitativamente expressivo, mas politicamente restrito diante do universo de 36,4 mil cargos em disputa, indicando que a sua presença local permanece pontual e dependente de uma maior penetração no nível subnacional.
Em termos simbólicos, as vitórias no Entroncamento (Santarém), em Albufeira (Faro) e em São Vicente (Ilha da Madeira) marcam a estreia da ultradireita no comando de Câmaras Municipais em Portugal. No entanto, os números ficaram muito abaixo das expectativas internas do Chega, que apontavam pelo menos trinta câmaras conquistadas, ou seja, dez vezes mais do que o previsto. O resultado foi, portanto, um “ganho relativo” já que houve uma expansão significativa no número de cargos conquistados. Porém, o impacto político permanece limitado do ponto de vista da vitória nas principais instâncias de comando municipais.
A ascensão do Chega em Portugal ocorre num contexto mais amplo, marcado pelo que os analistas têm descrito como a quarta onda de expansão da ultradireita no cenário internacional. Essa nova etapa, distinta de fases anteriores da expansão de grupos e atores vinculados a este espectro político, combina discursos reacionários, antissistema, nacionalistas, pautas identitárias e agendas anti-imigração com estratégias mais institucionalizadas de disputa eleitoral. Embora compartilhem traços comuns, tendem a conservar alguma pluralidade entre si, a depender de cada experiência.
Em vários países europeus, forças semelhantes avançam de forma expressiva. Na França, o Rassemblement National, de Marine Le Pen, liderou o primeiro turno das legislativas francesas de 2024; na Alemanha, o Alternative für Deutschland (AfD) cresceu nas europeias e ampliou influência regional no território; nos Países Baixos, o Partij voor de Vrijheid (PVV) venceu as legislativas de 2023 e formou um governo de ultradireita em 2024; na Áustria, o FPÖ alcançou o primeiro lugar nas legislativas de 2024; e, na Itália, os Fratelli d’Italia consolidaram-se no poder, ampliando a presença no Parlamento Europeu. O avanço do Chega, portanto, insere Portugal nesse movimento continental de reconfiguração das direitas, ainda que com dinâmicas próprias e sob constrangimentos específicos do sistema político português, especialmente no nível local.
Do ponto de vista político, o avanço do Chega encontrou obstáculos em razão do desempenho dos partidos de centro-direita e centro-esquerda. O PSD saiu fortalecido após vencer nas principais cidades – Lisboa e Porto – e consolidou-se como a principal força da centro-direita. Já o PS manteve-se competitivo e assegurou presença relevante em distritos do Norte e do Centro do país, apesar da perda de capital político face à ascensão do Chega e da coligação liderada pelo PSD. Em contrapartida, os movimentos independentes e candidaturas locais desempenharam um papel determinante. Mantiveram o equilíbrio do poder autárquico português ancorado em dinâmicas regionais e lideranças locais.
O paradoxo do Chega
As eleições autárquicas de 2025 revelaram de forma nítida a contradição central do Chega: o que lhe garante força no plano nacional é justamente o que o fragiliza e impõe obstáculos no plano local. O discurso insurgente e salvacionista que projetou a sigla como partido de protesto, ancorado na liderança personalista de André Ventura, produziu resultados expressivos nas legislativas, mas parece ter encontrado limites quando o voto dependeu de vínculos de proximidade e da confiança comunitária. Afinal, a eleição de candidatos do Chega não parece ter oferecido ao eleitor português a garantia de que os problemas locais receberiam a mesma atenção que outras pautas mais ligadas ao conservadorismo moral, por exemplo.
A campanha, construída em torno de Ventura e de figuras midiáticas como Rita Matias, reforçou a visibilidade do partido, traduzindo-se em votos para cargos de menor peso político, mas pouco contribuiu para garantir resultados mais expressivos. Desta perspectiva, o Chega cresceu em termos representativos, mas permaneceu sem quadros locais de peso e redes estáveis de apoio popular – um paradoxo que torna o seu avanço mais quantitativo que qualitativo.
Nas legislativas de maio, o partido consolidou-se como a segunda força no Parlamento português, beneficiando-se de um eleitorado descontente com o PSD e o PS e do apoio expressivo dos expatriados. Nas eleições autárquicas, porém, essa base revelou-se frágil, já que a transferência do voto de protesto para o voto focado na gestão local parece não ter se concretizado tão fortemente. O desempenho modesto ante a expectativa de suas lideranças, apesar do aumento no número de autarcas, demonstra que o Chega ainda não conseguiu transformar a contestação em institucionalização.
O mapa político após 12 de outubro reafirma o peso das máquinas partidárias tradicionais e a importância das candidaturas independentes, mas também sugere que a ultradireita portuguesa não é um fenômeno passageiro. Pelo contrário. É uma força em consolidação, ainda que de modo desigual. O Chega ampliou presença institucional, mas não conseguiu provar que é capaz de se adaptar à lógica institucionalizada do poder local e, portanto, “ganhou perdendo”.
Seu futuro dependerá da capacidade de reconciliar a retórica nacional com as práticas da política enraizada no nível local. Para isso será necessário demonstrar capacidade para se adaptar à política partidária, superar o dilema de ser um partido centralizado em quadros como André Ventura e apresentar perspectivas viáveis aos eleitores de fora de sua base mais radicalizada. No limite, é também o dilema que a ultradireita encontra ao se institucionalizar em todo mundo: enfrentar os problemas reais da política cotidiana. O tempo dirá se o Chega será capaz de jogar conforme as regras do poder local, se continuará apostando apenas nas cartas do carisma e da contestação ou se imprimirá uma nova dinâmica para o jogo político português.
Camila Miranda Evangelista é doutoranda em Ciências Sociais na PUC-Rio, em período sanduíche na Universidade de Coimbra.
Gustavo Fernandes Paravizo Mira é doutor em Ciências Sociais pela UFJF. É pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Política Local (NEPOL-UFJF)



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