Sem previsão, sem tempo. Como políticos no nível local falham em antecipar os riscos de desastres
- NEPOL UFJF
- 21 de mai.
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Luiz Antonio Couto Soares
Começando por um exemplo…
Em 2011, a cidade de Itabuna (BA) enfrentou uma sequência de enxurradas que levou a, pelo menos, dois óbitos. A cidade, que já havia sido afetada na primeira metade dos anos 2000, por grandes alagamentos do Rio Cachoeira, voltou a ser abalada pelas fortes chuvas que, naquele ano, se estenderam para além das tempestades de verão e se repetiram em agosto.
Este acontecimento, alinhado ao contexto nacional de discussões sobre a adoção de políticas de gestão de riscos e a adaptação aos eventos climáticos extremos devido à tragédia provocada pelos deslizamentos na região serrana do Rio de Janeiro no mesmo ano, poderia acender o alerta das autoridades itabunenses para a necessidade de adoção de uma nova governança no município, frente à nova realidade climática, cada vez mais instável. Uma janela de oportunidade havia se aberto e poderia levar à adoção de políticas de longo prazo para prevenir este tipo de desastre no futuro.
Não foi o que ocorreu. Uma década depois, no final de 2021, a população da cidade voltou a ser gravemente afetada pelas chuvas intensas e a inundação do Rio Cachoeira, em enxurradas que deixaram, pelo menos, dois mortos e seis desaparecidos. Essas chuvas, que afetaram grande parte do sul da Bahia naquele ano, impactaram gravemente Itabuna, alagando centenas de casas e deixando mais de 1500 famílias desabrigadas, no que foi considerado o segundo maior desastre climático da história da cidade. A prefeitura reagiu desta vez com o decreto de calamidade pública e a criação de um gabinete de gestão de crise.
A partir desta ocorrência de 2021, mais medidas foram tomadas para remediar a situação. Um relatório foi produzido pela Coordenação Municipal de Defesa Civil, apontando a dinâmica hidrológica do evento e potenciais medidas de prevenção. Um auxílio foi criado para atender às famílias das vítimas, e obras começaram para construir novas casas para os desalojados fora das áreas de risco. Também foram preparados novos planos de ação para a Defesa Civil do município. Apesar desses esforços, no início do verão do ano seguinte as chuvas voltaram a provocar estragos, e ainda que a intensidade tenha sido menor que a do ano anterior, centenas de pessoas ficaram desabrigadas.
O exemplo de Itabuna é só um entre centenas de municípios que quando falham em responder aos primeiros sinais de uma vulnerabilidade climática crescente, acabam por sofrer com intempéries cada vez mais intensas. Com o aquecimento global provocando o aumento da frequência e da intensidade de eventos climáticos extremos, a situação dos municípios brasileiros, que já era de vulnerabilidade devido à elevada desigualdade e falta de infraestrutura, passa a ser crítica.
Figura 1 - Número de Desastres no Brasil, por ano (1991-2023). Dados do “Atlas Digital de Desastres no Brasil”/ MIDR.

O número de decretos de situação de emergência e estado de calamidade pública em virtude de eventos climáticos extremos aumentou muito no Brasil ao longo das últimas três décadas. Dados do “Sistema AdaptaBrasil”, do Ministério de Ciência e Tecnologia, apontam que mais de 1500 municípios estão sob risco alto ou muito alto de serem atingidos por inundações, enxurradas e alagamentos. A resposta do poder público, quando existe, costuma vir a reboque da ocorrência de novos desastres e, frequentemente, focam apenas no atendimento imediato às vítimas do evento, sem considerações de longo prazo sobre as ameaças climáticas futuras.

Mas o que os municípios poderiam fazer?
A Constituição Federal e legislações posteriores que regulamentam a adoção de políticas ambientais, climáticas e de defesa civil (como a Lei Federal nº 12.608, de 10 de abril de 2012) atribuem aos municípios grande parte da responsabilidade pela execução das políticas de gestão de risco de desastres. São os municípios os responsáveis pela política de zoneamento e de definição dos planos diretores, além de líderes nas políticas de habitação social. Todos esses instrumentos são importantes para garantir que a população possa habitar fora das áreas sob elevado risco de desastres.
Também é no âmbito municipal, em conjunto com os estados, que a Defesa Civil opera os sistemas de alerta e monitoramento de desastres, e que ocorre a construção da maior parte da infraestrutura necessária para adaptação climática, incluindo sistemas de drenagem e contenção de águas, reservatórios contra as secas, além da manutenção de áreas verdes (como parques e áreas florestais), que podem auxiliar no aumento da permeabilidade do solo, reduzindo as chances de inundações e enxurradas.
Além da construção e manutenção de infraestrutura, a adaptação climática nos municípios também passa pelas formas de adaptação social e institucional. Reduzir a pobreza e aumentar o grau de instrução da população são medidas que contribuem para a redução da vulnerabilidade climática, ao criar comunidades mais resilientes e capazes de lidar com as possíveis perdas causadas pelos desastres.
Os caminhos para que os municípios se preparem para os novos riscos climáticos já estão mapeados: a avaliação técnica dos riscos hidrológicos na realidade local; o fortalecimento das defesas civis municipais; a adoção de políticas de zoneamento e planos diretores que promovam a habitação em áreas seguras e com tipos de construção adequados; políticas habitacionais específicas voltadas para a população que hoje mora em áreas de risco; a construção e manutenção da infraestrutura de saneamento, água e coleta de resíduos; e a manutenção de áreas verdes e de mananciais.
Por que os políticos não estão agindo pela adaptação climática no nível local?
Se já temos os caminhos, por que ainda há um déficit tão grande de adaptação nos municípios brasileiros? A literatura especializada tem se voltado para essa questão e já identificou algumas respostas. Uma das primeiras a aparecer em entrevistas com gestores é sempre a indisponibilidade de recursos. Mesmo prefeitos conscientes do problema climático não são capazes de realizar as adaptações necessárias para a nova realidade climática sem fontes de financiamento de longo prazo.
A construção de infraestrutura, a expansão das políticas habitacionais e a implementação de sistemas de vigilância e alerta no nível local requerem um comprometimento nacional para garantir que os municípios disponham dos recursos necessários para a sua implementação. A obtenção dessas receitas pode estar atrelada a planos de desenvolvimento econômico sustentável das regiões mais vulneráveis à emergência climática, garantindo apoio público à destinação de recursos para este fim.
Além do financiamento para obras e manutenção de infraestrutura, o financiamento climático também deve compreender a construção de capacidades das burocracias municipais, com a contratação de técnicos especializados nos setores envolvidos na definição das políticas climáticas, essenciais para a produção de bons desenhos de política adaptados à realidade local. Além disso, é fundamental que os governos federal e estadual participem provendo informações adequadas aos municípios para a gestão de riscos, como já previsto no “Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima”.
Outro obstáculo observado com frequência decorre dos conflitos de atribuições entre unidades federativas. Uma vez que é compreendida como responsabilidade compartilhada entre os entes federados, a implementação das políticas climáticas frequentemente esbarra em divergências de prioridades entre o governo local e os governos de outros municípios que compartilham um mesmo regime hidrográfico, ou dos respectivos estados e da União. A adoção de uma distribuição clara de responsabilidades e a cooperação entre unidades federativas pode contribuir para que a implementação das políticas necessárias ocorra de forma mais eficiente.
Até aqui, os obstáculos citados não se distinguem dos que são normalmente observados em relação à implementação de políticas públicas em qualquer domínio. A falta de recursos, capacidades e cooperação são obstáculos à adoção de políticas de saúde, educação e segurança tanto quanto para as de clima. A diferença nas políticas de gestão de riscos climáticos em comparação às demais está principalmente nos obstáculos cognitivos e políticos associados a elas.
Fatores cognitivos dizem respeito à falta de conhecimento de grande parte dos gestores públicos e lideranças políticas locais sobre as causas da intensificação da ocorrência de emergências climáticas e das possíveis soluções para elas. Ainda existe em grande parte desses atores e da população a percepção equivocada de que esse tipo de evento é completamente imprevisível, e além do que as políticas públicas são capazes de antecipar. A consequência é a adoção de um tipo de política focada apenas em atender as vítimas após a ocorrência dos desastres, ignorando a adoção de medidas que mitiguem os riscos desde antes da ocorrência dos eventuais desastres.
A consequência direta dessa mentalidade é a não responsabilização de gestores que falham em prevenir essas emergências. Ao contrário de políticas de educação e saúde, com as quais a população interage cotidianamente e às quais já se compreende serem responsabilidade dos governantes, as consequências dos extremos climáticos são lembradas quase sempre apenas no período imediatamente após a ocorrência desses.
Por conta disso, gestores que não atuam na prevenção a desastres nem sempre são punidos eleitoralmente. Pelo contrário, a ocorrência desses eventos oferece uma oportunidade para vereadores e prefeitos aumentarem os investimentos durante a vigência do estado de calamidade pública (em que regras fiscais e para licitações são flexibilizadas) e oferecerem assistência emergencial aos afetados, o que pode gerar gratidão eleitoral pela atuação em um momento sensível. Neste contexto, qual incentivo eleitoral teriam os governantes para adotarem políticas de forma antecipada?
Neste sentido, a responsabilização dos atores políticos pelos danos climáticos e o enquadramento da questão climática como responsabilidade do poder público são fundamentais para que se rompa com o ciclo de incentivos para a inação dos governos. Os casos bem sucedidos de adoção de novas políticas de prevenção, alerta e adaptação após a ocorrência de extremos climáticos nas cidades ocorrem justamente quando o engajamento civil, seja através de movimentos sociais, organizações da sociedade civil ou da mídia, é capaz de atribuir a responsabilidade pelas tragédias aos governantes.
Concluindo: para além dos obstáculos comuns a todas as áreas de políticas públicas, os obstáculos à adoção de políticas efetivas de gestão de risco de desastres e adaptação climática nos municípios são de natureza política. O avanço dessa agenda de políticas públicas requer a consolidação do entendimento da população e dos atores políticos sobre as responsabilidades do poder público frente à nova realidade climática.
Até lá, a ação coordenada de movimentos sociais, o engajamento da comunidade científica especializada, e a atenção da mídia para a agenda climática serão instrumentos importantes para pressionar os políticos no nível local a adotarem uma governança antecipatória focada na prevenção e mitigação dos riscos climáticos futuros, em vez de apenas esperar pelas próximas chuvas ou secas para se tomar uma ação.
O mais trágico nisso tudo é que, apesar da contemporaneidade da crise climática, tanto o problema da resposta política insuficiente perante os desastres quanto os caminhos para solucioná-la não são novos. Voltando ao caso de Itabuna: Muito antes das enxurradas de 2021, e mesmo das de 2011, a cidade já havia sido quase destruída por um evento parecido, os alagamentos de dezembro de 1967. Moradores que viveram os dois eventos relembram com dor aquele acontecimento que causou incontáveis mortes, e veem com tristeza a repetição das imagens quase sessenta anos depois.
Entre os cronistas da tragédia de 1967, o autor local “José Dantas de Andrade” escreveu no ano seguinte um dos relatos mais curiosos: a “Carta do Rio Cachoeira aos Itabunenses”. Narrada na perspectiva do rio que cruza a cidade, a “carta” é uma defesa do rio, e uma acusação da responsabilidade humana pelo desastre. O Rio lamenta: “Vocês culpam-me por tudo que fiz e que não fiz…”, e encerra com um alerta que continua a fazer sentido até hoje:
“Espero que todos vocês, pouco a pouco, se conformem e se esqueçam do que aconteceu. Trabalhem para recuperar o que perderam, enquanto eu continuarei a ajudar-lhe a construir o que foi destruído e lavar o que ficou sujo. Espero também, que, para o futuro, fiquem prevenidos, porque, mais tarde ou mais cedo, pode a natureza me forçar a fazer-lhes uma nova visita.” (Excerto do texto “Carta do Cachoeira aos Itabunenses”, de José Dantas de Andrade. Publicação original no livro: “Documentário Histórico Ilustrado de Itabuna”, 1986).
Luiz Antonio Couto Soares é mestrando em Ciência Política e Bacharel em Ciências Sociais pela USP
Email: luiz.sc@usp.br
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