Lideranças femininas da ultradireita: entre empoderamento e cruzadas morais
- NEPOL UFJF
- 7 de mai.
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Célia Arribas
Nos últimos anos, temos observado com perplexidade – mas também com rigor analítico – a ascensão de lideranças femininas no campo da ultradireita, tanto no Brasil quanto em outros países das Américas e da Europa. Essas figuras, promovidas por partidos conservadores, movimentos religiosos ou plataformas digitais, ocupam espaços institucionais e discursivos em defesa de agendas que colocam em xeque conquistas históricas dos feminismos. No entanto, é um erro subestimar sua atuação ou vê-las apenas como figuras contraditórias. O que está em jogo, entre outras questões, é a construção de uma identidade política antifeminista que instrumentaliza os discursos de gênero e sexualidade como ferramentas de disputa política, cultural e moral, tensionando os limites da democracia.
Esse movimento está profundamente articulado com o avanço das chamadas políticas antigênero, um fenômeno transnacional que busca deslegitimar a produção acadêmica, os direitos sexuais e reprodutivos, os marcos legais de proteção às mulheres e às pessoas LGBTQIA+, e as políticas públicas orientadas pela equidade. Essas lideranças não atuam de forma difusa, mas se organizam em torno de estratégias discursivas e legislativas que visam “proteger a família”, “defender a infância” e “salvar valores tradicionais”, frequentemente amparadas por lógicas religiosas, neoliberais e punitivistas.
Nesse cenário, a presença de mulheres na linha de frente desses discursos não deve ser vista como simples contradição, mas como peça estratégica na legitimação de uma agenda neoconservadora, ultradireitista e/ou reacionária. São mulheres que se posicionam como “mães”, “guardiãs da moral” ou “defensoras da liberdade”, conferindo legitimidade de gênero a projetos políticos que, em última instância, visam restringir a autonomia e os direitos de outras mulheres. Ao reivindicarem um papel de autoridade feminina em nome da tradição, da fé e da ordem, contribuem para a consolidação de um feminismo seletivo e moralizado, que atua na lógica da exclusão: quem são as mulheres dignas de proteção? Quem pode ou não decidir sobre seu corpo, sua sexualidade, sua vida?
Essa disputa pelo sentido da mulher e da política de gênero é central para compreender os contornos da ultradireita contemporânea global na nova era digital, já que é nesse contexto que as articulações conservadoras ganham ainda mais potência com o uso estratégico das redes sociais como arenas privilegiadas de mobilização política e produção de sentido.
As plataformas digitais, marcadas pela lógica algorítmica de engajamento e pela ausência de regulamentação efetiva, tornam-se terreno fértil para a disseminação de discursos antifeministas, antigênero e ultraconservadores. Nesses ambientes, lideranças femininas da ultradireita – muitas vezes investidas de uma estética cuidadosa e de uma retórica emocional – ativam seguidores(as) com narrativas que misturam religião, moralidade e ressentimento. A performatividade política desses discursos é amplificada por influenciadoras, youtubers, vereadoras e deputadas que circulam entre esferas institucionais e espaços digitais, promovendo um ativismo conservador altamente eficaz. Assim, consolidam-se bolhas de sentido em que a retórica da “proteção da infância e da família”, da “liberdade de expressão” ou da “ideologia de gênero” é usada como ferramenta de ataque às lutas feministas e LGBTQIA+, enquanto se monetiza audiência e se legitima um projeto político que desloca a disputa de direitos para o campo da moralidade.
Antifeminismo como identidade política
Luis Felipe Miguel e Alana Fontenelle propõem uma leitura fundamental para entender esse fenômeno. Para os autores, o antifeminismo contemporâneo ultrapassa a simples negação das pautas feministas. Ele se estrutura como uma identidade política autônoma, coerente e mobilizadora, baseada na articulação de diferentes eixos discursivos: o moralismo religioso, a defesa da família “tradicional”, o combate à “ideologia de gênero” e a crítica à esquerda política.
A deputada católica Chris Tonietto (PL/RJ), figura central do estudo, é apresentada como um exemplo de como o antifeminismo se transforma em um capital político. Seu discurso performa uma figura feminina submissa e devota, mas ao mesmo tempo agressiva e combativa contra o que identifica como “ameaças morais” – feminismo, aborto, direitos LGBTQIA+ e laicidade. Essa postura não é incoerente; ao contrário, é estrategicamente construída para produzir efeitos políticos, reforçar alianças com setores religiosos e conservadores, e consolidar uma base de apoio.
Longe de ser um fenômeno marginal, o antifeminismo constitui-se como uma estratégia política racionalizada e difundida entre diferentes esferas do poder. Se Miguel e Fontenelle evidenciam, a partir do caso de Chris Tonietto, a formação de uma identidade política antifeminista ancorada no moralismo religioso e na lógica da guerra cultural, Camila Galetti amplia essa abordagem ao demonstrar como esse mesmo discurso se ramifica entre diversas parlamentares da ultradireita, produzindo um repertório comum de valores e afetos.
Entre as personagens estudadas – em sua maioria filiadas ao Partido Social Liberal (PSL) e associadas à figura de Jair Bolsonaro – destacam-se Chris Tonietto, Carla Zambelli, Joice Hasselmann, Dayane Pimentel, Major Fabiana, entre outras, que adotaram uma retórica fortemente marcada pelo antifeminismo de Estado. Essa forma de antifeminismo se manifesta como um projeto político e ideológico que atua dentro da institucionalidade, buscando barrar ou revogar políticas públicas voltadas para a equidade de gênero, além de legislar em favor de pautas morais e conservadoras. Galetti analisa os materiais de campanha e a presença digital dessas deputadas, e revela como suas identidades políticas são moldadas por afetos como o ressentimento, em especial em relação aos avanços feministas e à ampliação dos direitos das mulheres.
Um dos méritos da tese é também propor o conceito de bolsonarismo como “incubadora de atrizes políticas antifeministas”, para explicar como o governo de Jair Bolsonaro não apenas tolerou, mas promoveu ativamente a ascensão de mulheres com discursos contrários às agendas de gênero. Esse movimento é especialmente paradoxal porque ocorre ao mesmo tempo em que há uma maior inserção feminina na política institucional – como mostra o crescimento da bancada feminina em 2018 e em 2022 –, mas em um registro que desmobiliza pautas historicamente defendidas pelos movimentos feministas. Essas parlamentares assumem uma representação que recusa o feminismo enquanto movimento social, ao mesmo tempo que se valem de uma suposta autoridade feminina e materna para justificar suas posições morais e legislativas, disputar representatividade e deslegitimar as pautas feministas no Congresso.
Discursos e práticas na política local
Embora o debate público e acadêmico tenha se concentrado majoritariamente nas mulheres da ultradireita que ocupam cadeiras no Congresso Nacional ou nas Assembleias Legislativas, é fundamental deslocar o olhar para os espaços da política local, especialmente as Câmaras Municipais. É nesse nível que muitas lideranças políticas se formam, constroem base eleitoral e consolidam discursos que serão posteriormente projetados em âmbito estadual ou federal. Além disso, a política local é onde as pautas morais ganham maior capilaridade e os projetos de controle sobre os corpos e a sexualidade – especialmente de mulheres e pessoas LGBTQIA+ – se materializam de forma direta e cotidiana, por meio de legislações sobre educação, saúde e cultura. Nesse sentido, observar a atuação de vereadoras antifeministas permite compreender como os discursos conservadores se territorializam, criam aderência social e se tornam parte das dinâmicas de poder nas cidades, em especial nas periferias urbanas e nas regiões com forte presença de igrejas evangélicas e católicas.
Entre essas muitas figuras, destacam-se vereadoras como Jessicão (PP/Londrina-PR), Michele Collins (PP/Recife-PE) e Sonaira Fernandes (PL/São Paulo-SP), que têm se notabilizado por agendas vinculadas ao conservadorismo religioso, ao combate à educação sexual nas escolas, à defesa da “família tradicional” e à oposição aos direitos de pessoas LGBTQIA+ e à descriminalização do aborto. São mulheres que, embora estejam politicamente ativas, rejeitam os princípios basilares do feminismo – como a luta por igualdade de gênero e a crítica à divisão sexual do trabalho – e constroem suas plataformas com base em valores cristãos, morais e neoliberais.
Sonaira Fernandes, por exemplo, ganhou notoriedade como vereadora na cidade de São Paulo e hoje está em seu segundo mandato. Com atuação fortemente associada ao bolsonarismo, não apenas se coloca contra o feminismo e a esquerda, mas constrói sua atuação discursiva em oposição direta às pautas de gênero, defendendo “direitos das mulheres” sob a ótica da maternidade e da “proteção da vida”. Mulher negra e migrante da Bahia, Sonaira se posiciona rejeitando explicitamente a identidade política associada ao feminismo negro. Ao se distanciar de narrativas de raça e gênero como formas de resistência, ela reforça sua adesão ao discurso meritocrático e conservador. Suas declarações também exemplificam como figuras da ultradireita racializadas podem mobilizar a própria identidade como contraponto à luta antirracista. Esse fenômeno revela, ainda, uma dinâmica específica da agência de mulheres negras no debate público contemporâneo: ao se afirmarem dentro de projetos políticos de viés conservador, elas ocupam espaços historicamente negados às mulheres negras, mas o fazem ressignificando a pauta racial em chave de conformidade com valores tradicionais. Assim, reafirmam sua presença e legitimidade na cena política, mas reconfiguram o debate antirracista, substituindo agendas de enfrentamento estrutural por narrativas de superação individual, deslocando o eixo da denúncia coletiva para uma retórica de integração pela adesão à ordem vigente.
No caso da Missionária Michele Collins, sua trajetória traz explicitamente uma interseção entre religião e política institucional. Oriunda da militância evangélica pentecostal e vinculada ao segmento da “defesa da vida”, Michele atua com forte respaldo das igrejas, articulando-se em redes religiosas e políticas que operam na lógica da guerra espiritual e da moralidade sexual. Além dessas pautas, destaca-se também por sua atuação junto às pessoas com deficiência, defendendo políticas de inclusão e acessibilidade. Essa frente de atuação, embora dialogando com princípios de proteção e assistência social, é igualmente atravessada por valores religiosos que moldam sua compreensão da dignidade humana e do papel do Estado, reforçando sua legitimidade tanto no campo religioso quanto na política institucional.
Jessicão, por sua vez, tornou-se conhecida por associar políticas públicas de segurança com retóricas antiaborto, promovendo uma espécie de “militância da moralidade”, em que questões como o feminicídio e a desigualdade de gênero são reconfiguradas em termos de “crise da família”. A atuação da vereadora, mulher lésbica, também dá destaque a discursos contrários aos direitos das pessoas LGBTQIA+, principalmente pessoas trans, o que nos faz pensar como identidades dissidentes podem ser instrumentalizadas por agendas conservadoras. Sua presença na política ilustra uma espécie de “diversidade domesticada”, que se expressa na despolitização das lutas sociais, na absorção controlada das diferenças raciais, sexuais e de gênero, e na instrumentalização da diversidade como ferramenta de legitimação de projetos conservadores e neoliberais, esvaziando seu potencial crítico e transformador. Assim, mesmo pertencendo a um grupo historicamente marginalizado, Jessicão reforça fronteiras normativas de gênero e sexualidade, mostrando que nem toda diversidade é, de fato, progressista.
Longe de constituir um bloco homogêneo, a presença feminina na política e a ascensão das mulheres da ultradireita no cenário político brasileiro – não apenas nos parlamentos nacionais, mas sobretudo nas câmaras municipais – impõe a urgência de novas leituras sobre o que significa “representação feminina”.
Não subestimar, mas decifrar
O crescimento da presença de mulheres na política de ultradireita não pode ser compreendido como avanço automático da equidade de gênero. Na verdade, esse movimento reconfigura os discursos políticos de gênero, oferecendo às mulheres um papel ativo em agendas antifeministas, mas legitimado pela sua própria feminilidade, maternidade, moralidade e religiosidade.
Essas lideranças assumem a função de porta-vozes do antifeminismo, o que lhes confere credibilidade na promoção de discursos que, se ditos por homens, poderiam ser facilmente tachados de misóginos. Isso cria um paradoxo: enquanto o discurso defende a permanência das mulheres nos papéis tradicionais, suas lideranças ganham protagonismo justamente na esfera pública e política. Essa retórica cria uma dissonância calculada: essas lideranças são mulheres que ascendem à vida pública por meio das aberturas produzidas por lutas feministas, mas renegam essa história para afirmar que seu sucesso é resultado do seu empoderamento por sua fé, sua obediência, seu mérito e sua moralidade, assumindo visualmente o papel de “mulheres de bem”. Trata-se de uma performance política poderosa, pois alia o simbólico da “mulher virtuosa” à mulher guerreira contra o “mal” feminista – “mal” representado por uma série de conquistas em termos de direitos sexuais, reprodutivos e de cidadania, o que coloca em questão os limites da democracia, quando negam direitos fundamentais sob o pretexto da liberdade religiosa ou de expressão.
O antifeminismo não apenas estrutura discursos de exclusão, mas também opera como uma ferramenta de capitalização política, utilizada para fortalecer laços com determinadas bases eleitorais e construir legitimidade institucional. Nesse processo, os discursos sobre gênero tornam-se centrais na disputa simbólica contemporânea, transformando-se em uma arena privilegiada de mobilização da ultradireita no Brasil.
Compreender a atuação dessas mulheres e decifrá-las passa por entender suas estratégias e desenvolver um olhar crítico capaz de reconhecer as tensões entre religiosidade, identidade, afeto e política, ciente de que a disputa por direitos envolve também disputas de significados e subjetividades. Para isso, é fundamental ampliar a análise, reconhecendo as múltiplas formas de agência e os arranjos simbólicos, discursivos e políticos que sustentam esses protagonismos.
Célia Arribas é professora do Departamento de Ciências Sociais e coordenadora do GENI – Grupo de Estudo em Gênero e Interdisciplinaridade.
@geniufjf
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